A Carta Que Nunca Receberás
"Isabela,
Sim, porque há muitos anos que perdi o direito de te chamar de filha...
Eu ainda hoje sonho contigo e dou por mim a pensar em ti. Choro. O que eu te fiz é imperdoável e agora que reflito sobre isso, eu nunca te pedi desculpa. Por vezes não é somente o que fizemos para que as pessoas partissem, mas também o que não fizemos para que elas voltassem.
Quando passei a viver apenas em função de mim, portanto, sem me preocupar contigo, agora vejo que te magoei. Na altura ainda não tinha aceitado que o teu pai tivesse negado submeter-se aos meus caprichos e se tivesse separado de mim. Eu odiei-o por isso e tu também tinhas que o odiar. Pensava eu. As minhas múltiplas tentativas falhadas de relações, às quais te expus, fizeram com que perdesse o resto da dignidade que me sobrava e caí num poço aparentemente sem fundo. Ignorei as vezes em que me limpaste as lágrimas dos olhos, em que me deste a mão e o colo e em que me pediste que não me deixasse corromper pelo ódio. Eu sentia necessidade de me sentir valorizada pelas pessoas de fora e não me preocupei com o valor que tinha para ti.
Contudo, sei que quando pus aquele homem em nossa casa, mesmo sob avisos teus, isso ditou o nosso fim. No dia em que deixei que ele te tocasse eu perdi-te. Tu não odiavas o teu pai como eu e esse foi o teu castigo. Não quis saber quando berraste de desespero e quando te vi com a cara inchada, o olho negro e lágrimas mudas a correrem-te pelo rosto. Eu não ouvi o teu silêncio. O teu olhar tornou-se vazio e eu morri dentro de ti. Saíste com as malas pela porta de casa e eu não te impedi. Troquei a minha filha por um homem que hoje nem sei onde anda.
Hoje refleti sobre os anos que passaram... não te levei à escola no teu primeiro dia de aulas, nem te preparei com carinho os lanches. Não te vi radiante por ires à tua gala do 9º ano nem te acalmei quando sentiste receio sobre que àrea escolher seguir no secundário. Não soube que cursos ponderaste vir a seguir nem acompanhei os teus namoriscos da adolescência. Não fui contigo escolher o vestido para a tua gala de finalistas nem foi comigo que te foste inscrever na universidade. Nunca te cheguei a dar o meu traje com o qual sonhei ver-te vestida nem te contei as minhas peripécias enquanto estudante. Quando der por ti formas-te e eu nem assisti à tua queima das fitas. Como poderia querer que me chamasses de mãe?!
Não me lembro do teu sorriso nem do calor do teu abraço. Não me lembro da última vez que te demonstrei um gesto de carinho ou que te disse que gostava de ti. Deves estar uma mulher...
Esta é a carta que nunca receberás. Não pelo facto das cartas terem caído em desuso, mas sim porque nunca seria capaz de ta mandar. No fundo acho que nem a irias ler...
Cumprimentos saudosos e de arrependimento,
a mulher que te teve mas que não foi capaz de te criar.